Neutralidade da Rede, Um Princípio a Proteger

Se hoje decidir visitar a versão em inglês da Wikipédia, e procurar a página relativa a “Net Neutrality”, encontrará nesse artigo uma imagem ilustrativa cuja origem lhe poderá parecer familiar. Trata-se de um anúncio de um fornecedor de telecomunicações português que detalha a oferta de pacotes opcionais de dados para telemóvel, oferecendo acesso adicional a certos serviços, como redes sociais ou aplicações de mensagens.

Isto pode parecer, à partida, completamente inócuo, uma prática perfeitamente normal para uma empresa deste tipo.  Então como é que esta situação se tornou num mau exemplo da proteção deste suposto princípio de neutralidade da rede? Será verdade que Portugal está a falhar na regulação do mercado das telecomunicações?

Antes de mais, parece-me importante definir o que se entende por “Net Neutrality”, ou neutralidade da rede. Da forma mais simples possível, trata-se do princípio que os fornecedores de acesso à internet (em inglês, “Internet Service Providers”, ou ISP) devem tratar todo o tráfego de dados que por eles passa da mesma maneira, não discriminando o conteúdo ou a sua origem. Qualquer que seja o conteúdo que os seus clientes procuram na internet, recebem-no com a mesma velocidade e qualidade.

Mas será que a não aplicação deste princípio pode prejudicar o consumidor?

Imagine como seria se a luz que lhe chega a casa fosse tratada de forma diferente consoante o uso que lhe quisesse dar. O seu forno, por exemplo, poderia estar limitado a 60º porque a corrente estava restrita, enquanto que a sua televisão, por oferta especial, podia ser usada o dia inteiro sem que isso acrescentasse à sua conta mensal. Imagine, por outro lado, ter de adquirir uma subscrição especial para usar o seu secador de cabelo por mais de vinte minutos por dia.

Se as situações que descrevi lhe parecem insólitas, é porque o são. Mas no que toca ao acesso à internet, casos deste tipo podem aparecer em mercados que não respeitam o princípio da neutralidade da rede.

Acontece que, se um fornecedor de acesso à internet tiver a liberdade para escolher quais os dados que recebem tratamento prioritário, tem também o poder de criar situações que exploraram a sua condição de intermediário: Pode, por exemplo, exigir aos prestadores de serviço que mais tráfego utilizam, como sites de streaming de vídeo, taxas adicionais para que o seu conteúdo não seja estrangulado ou bloqueado antes que este possa chegar ao utilizador. Ou, alternativamente, pode dar prioridade a alguns sites ou aplicações mais populares, necessariamente afetando os pequenos criadores de conteúdo, que verão a sua velocidade reduzida e os seus utilizadores a diminuir.

Em ambos os exemplos, o resultado é o mesmo: uma redução da competição que arrisca prejudicar o consumidor. O Princípio da neutralidade de rede procura defendê-lo de estas situações, obrigando os fornecedores de acesso à internet a tratar todos os sites e aplicações que o utilizador queira aceder da mesma forma, sem estrangular alguns ou favorecer outros.

Assim, qualquer empresa que tenha presença na internet pode ter a certeza que está acessível ao mundo em pé de igualdade com as suas concorrentes, e o consumidor terá a liberdade para escolher o conteúdo, sites e aplicações que prefere na internet, sem estar sujeito a restrições.

Nos últimos anos, com o desenvolvimento e maturação da internet e do mercado das telecomunicações, o princípio de neutralidade de rede tem sido adotado pelas entidades reguladoras com o objetivo de proteger os utilizadores da rede.

Na união Europeia, as obrigações dos fornecedores de acesso à rede e as questões de “Net Neutrality” foram legisladas por diretrizes definidas em 2015, que hoje constituem as linhas orientadoras para as várias entidades reguladoras nacionais. Mas, ao contrário de países como a Holanda e a Eslovénia, Portugal não tem legislação própria para a garantia da neutralidade da rede, dependendo assim apenas dos regulamentos europeus e do papel da ANACOM, a Autoridade Nacional de Comunicações.

O que nos traz de volta ao primeiro parágrafo deste texto. As propostas que mencionei no início, oferecendo pacotes de dados pagos para certos grupos de aplicações, ou acesso livre a aplicações próprias do fornecedor, foram acusadas de favorecer apenas algumas ofertas de conteúdo, acabando por prejudicar todas as outras que não estavam incluídas nos pacotes.

Se estas ofertas bastam para violar o princípio da neutralidade da rede é uma questão ainda em aberto (A ANACOM acabou por intervir no caso citado), mas a dificuldade em definir exatamente como devem agir os reguladores põe em evidência as dúvidas que ainda persistem sobre a “Net Neutrality”, e a necessidade de clarificação da legislação existente.

Se leu este artigo sem ter qualquer conhecimento prévio da neutralidade da rede, não foi sem dúvida a única pessoa a fazê-lo. Mesmo quando os planos de dados portugueses corriam as redes sociais de língua inglesa, como exemplos do que podia acontecer se a neutralidade da rede não fosse respeitada, o debate dentro do nosso país foi quase ausente. As notícias passaram e foram esquecidas, e os portugueses continuaram na sua larga maioria sem consciência deste assunto.

Enquanto os reguladores europeus e portugueses continuarem a fazer um bom trabalho para regular os fornecedores de acesso à internet, este desconhecimento não é um problema. Mas se o clima político mudar, e este assunto continuar sem receber a atenção que merece, aquelas infrações que nos podem parecer inocentes e desculpáveis podem depressa evoluir para graves violações dos direitos dos consumidores.

Nos Estados Unidos, a reguladora FCC e a administração Trump já revogaram muita da legislação anteriormente estabelecida para assegurar a neutralidade da rede, aproveitando-se de uma apatia generalizada do povo americano para reformar os seus regulamentos de uma forma que favorece os fornecedores de acesso à internet e prejudica os utilizadores da rede.

Torna-se, assim, extremamente importante que fomentemos o conhecimento sobre a “Net Neutrality”, que apoiemos propostas legislativas que visem defender os utilizadores da rede, e que saibamos reconhecer quando o mercado livre e a competição estejam em risco, para que não arrisquemos acordar num mundo em que o conteúdo que queremos encontrar se encontra comprometido.

Para concluir, quero apenas relembrar a importância de continuarmos a lutar por todos os nossos direitos como utilizadores da rede. A “Net Neutrality” é apenas uma peça do puzzle necessária para assegurar o acesso livre e igual à internet. Questões sobre privacidade, custos, segurança e direitos de autor vão continuar a ser levantadas à medida que a internet se torna uma parte cada vez mais fundamental e interligada com as nossa vidas, e precisamos de nos manter a par e promover o debate ativo nestas áreas. Como cidadãos, eleitores, e militantes, é essencial que defendamos sempre na praça pública aqueles princípios que compreendemos ser fundamentais para a nossa sociedade. Tanto online como offline.