A Turquia e a União Europeia: o afastamento progressivo do projeto europeu

Resumo

O processo de adesão da Turquia tem sido dos mais difíceis da história dos alargamentos. Em 1999, a Turquia recebeu o estatuto de país candidato à UE e, consequentemente, assistiu-se a um progresso considerável na implementação das reformas exigidas pela União. Em 2003, Recep Tayyip Erdoğan tornou-se primeiro-ministro e continuou a seguir as diretrizes europeias. Contudo, independentemente das melhorias verificadas, a partir de 2008, verificou-se um afastamento progressivo da linha de pensamento da UE, por parte do governo turco. As reformas e melhorias eram cada vez mais escassas, ou até inexistentes, o que afastou, consideravelmente, a Turquia do projeto europeu. O objetivo deste artigo científico é evidenciar o impacto do governo turco nas relações Turquia/UE durante o mandato de Erdoğan enquanto primeiro-ministro. Assim, o artigo propõe-se a responder à seguinte questão: qual o impacto do governo turco nas relações Turquia/UE entre 2003 e 2014?

Palavras-chave: Turquia, União Europeia, Direitos Humanos, Liberdade de Expressão

 

Introdução

A Turquia e a União Europeia partilham uma longa história de altos e baixos. Em 1999, quando a Turquia recebeu o estatuto de país candidato à UE, verificaram-se mudanças substanciais no país. A grande motivação para ingressar na organização agiu quase como uma locomotiva na implementação das reformas europeias. O governo turco, dirigido por Recep Tayyip Erdoğan desde 2003, demonstrou vontade em conseguir que a Turquia fosse um membro oficial da UE e, até 2008, verificaram-se bastantes desenvolvimentos positivos nesse sentido. Contudo, o primeiro-ministro turco não manteve sempre a mesma performance, deixando a UE com muitas dúvidas face à elegibilidade da Turquia enquanto estado-membro. A progressiva divergência entre a linha de pensamento da UE e as ações do governo turco diminuiu, cada vez mais, a possibilidade de o país integrar a União.

Assim sendo, este artigo pretende evidenciar o impacto do governo turco nas relações Turquia/UE durante o mandato de Erdoğan enquanto primeiro-ministro. Para conseguir atingir este objetivo, o mesmo deve ser analisado juntamente com questão de partida: qual o impacto do governo turco nas relações Turquia/UE entre 2003 e 2014? O período estudado vai de 2003 a 2014, pois corresponde ao início e término das funções de Erdoğan enquanto primeiro-ministro.

O método utilizado neste artigo é método dedutivo, uma vez que o discurso está organizado de forma a dar uma resposta objetiva e lógica ao que é proposto na pergunta de partida. Proponho-me analisar o impacto do governo turco nas relações Turquia/UE no espaço de tempo mencionado e, em seguida, estruturar e apresentar os factos e argumentos para chegar a uma conclusão concreta.

As principais fontes utilizadas são os relatórios de progresso da Comissão Europeia, os relatórios da Freedom House, os relatórios da Human Rights Watch, os relatórios da Bertelsmann e uma miríade de artigos científicos que incidem diretamente neste tema.

Este artigo científico divide-se em três grandes capítulos: o primeiro contempla o enquadramento teórico deste trabalho, isto é, engloba as teorias da Ciência Política que suportam e explicam este tema – europeização e democratização – e uma breve contextualização histórica. A segunda versa sobre os avanços e recuos da Turquia, no contexto da implementação das reformas europeias. Nesta segunda parte é feita uma análise do afastamento da Turquia das diretrizes europeias, onde as áreas mais significativas para o artigo (direitos humanos e liberdade de expressão) têm um maior destaque. Finalmente, o último capítulo foca, especificamente, dois aspetos – a violação dos direitos humanos e a liberdade de expressão. Neste capítulo, estas duas áreas são estudadas com mais pormenor. Conclui-se que, embora se tenha verificado um período de progresso na implementação das reformas, o governo de Erdoğan entrou rapidamente num período de estagnação e, de seguida, de declínio. As constantes violações aos direitos humanos e à democracia configuraram-se como uma grande entrave para a adesão à UE.

 

A União Europeia e a Turquia: uma longa história

Enquadramento Teórico

A União Europeia teve um papel de destaque nos processos de democratização e europeização da Turquia. Assim, em primeiro lugar, é importante explicar em que consiste a democracia. De seguida, serão explorados os conceitos de democratização e europeização.

Não existe consenso relativamente ao conceito de democracia. Não obstante da ausência de uma definição única, vários autores têm vindo a participar neste debate e, consequentemente, têm vindo a contribuir com as suas próprias definições de democracia.

Segundo Leonardo Morlino, para um regime ser considerado democrático tem que englobar, pelo menos, “voto por sufrágio universal, para adultos; eleições recorrentes, livres, competitivas e justas; mais de um partido político; e mais de uma fonte de informação”[i]. Morlino refere, inclusivamente, que uma democracia eficaz deve “apresentar uma estrutura institucional estável, que garanta a liberdade e a igualdade dos cidadãos através do funcionamento legítimo e correto das instituições” (idem: 12).

Philippe Schmitter e Terry Karl apresentam-nos uma definição bastante minimalista do conceito de democracia. Segundos os autores, a democracia moderna é um “sistema governamental, no qual os governantes são responsabilizados, publicamente, pelos seus atos” (Schmitter & Karl, 1991: 4).

Na ótica de Robert Dahl, para um regime ser considerado democrático, tem que seguir um conjunto de oito condições mínimas: as decisões políticas são feitas por um representante eleito, as eleições são livres e justas, a população adulta tem direito ao voto, a população adulta pode concorrer a cargos estatais, existência de liberdade de expressão, existência de liberdade impressa, existência de várias fontes de informação e existência de liberdade de associação e organização. Segundo Dahl,

“O controlo sobre as decisões políticas do governo é constitucionalmente investido em representantes eleitos; os representantes eleitos são escolhidos em eleições frequentes e justas (…); praticamente todos os adultos têm o direito de votar na eleição dos representantes; praticamente todos os adultos têm o direito de concorrer a cargos no governo (…); os cidadãos têm o direito de se exprimir, relativamente a questões políticas, sem o perigo de serem severamente punidos (…); os cidadãos têm o direito de procurar fontes alternativas de informação (…); os cidadãos têm o direito de formar associações ou organizações independentes, incluindo partidos políticos e grupos de interesses” (Dahl, 1982 apud Schmitter & Karl, 1991: 5).

Um aspeto fundamental do sistema democrático é o Estado de Direito. De acordo com Rickard Mikaelsson, para além da democracia ter que englobar os aspetos já mencionados, tem também que garantir “a existência de múltiplos canais de expressão, a igualdade política entre cidadãos, os direitos das minorias, a existência de um sistema judicial não discriminatório e a liberdade de crença religiosa, de opinião, de debate, de reunião, de manifestação, de publicação e de petição” (Mikaelsson, 2008: 28).

Neste seguimento, segundo as autoras Lise Rakner, Alina Menocal e Verena Fritz, o processo de democratização está subdividido em três fases: “a fase de liberalização, a fase de transição e a fase de consolidação” (Rakner, Menocal & Fritz, 2007: 7). Todas estas fases devem ser explicadas, mais profundamente, de modo a entendermos o processo de democratização.

A fase de liberalização é o primeiro momento do processo de democratização. Esta fase inicia quando se verifica uma “abertura do regime autoritário, ou desmoronamento do mesmo” (ibidem).

A fase da transição democrática é definida pelos autores Sujian Guo e Gary Stradiotto, como um processo político que visa estabelecer princípios democráticos ao “promover valores e objetivos democráticos; permitir a oposição; permitir a negociação e o compromisso entre diferentes forças políticas para a resolução de conflitos sociais; institucionalizar estruturas pluralistas, através das quais as diferentes forças políticas podem competir sobre o poder; regularizar a transferência de poder; e empenhar-se na transformação fundamental da estrutura política” (Guo & Stradiotto, 2010: 10).

Por outras palavras, a transição democrática baseia-se no enfraquecimento do antigo regime autoritário e na emergência de instituições e normas democráticas. A transição democrática é um processo longo, trabalhoso e suscetível a avanços e recuos. Uma vez que o processo de transição inicia, as reformas implementadas podem ser alvo de constantes avanços e retrocessos.

A consolidação da democracia é definida, por Alamendu Misra, como a “institucionalização e socialização de certos valores e normas democráticas e a sua posterior legitimação” (Misra, 1999: 1). É de notar que a consolidação da democracia é uma tarefa difícil, demorada e, muitas vezes, os países em transição não conseguem alcançar esta fase. Assim sendo, a consolidação da democracia não é o resultado garantido, mas sim um dos desfechos possíveis quando um regime se encontra sob um processo de democratização.

A União Europeia é uma organização supranacional que defende valores como a democracia, igualdade, paz e liberdade. Segundo Claudio Radaelli o processo de europeização pode ser definido como o “processo de construção, difusão e institucionalização de regras, formais ou informais, paradigmas políticos, estilos, “maneira de fazer as coisas” e partilha de crenças e normas que são, inicialmente, definidas e consolidadas no processo de decisão da UE e depois incorporadas na lógica de discurso interno, das identidades, das estruturas políticas e das políticas públicas” (Radaelli, 2003: 30)

Assim sendo, o processo de europeização exige a implementação de reformas em vários setores, de modo a haver um alinhamento e aproximação aos valores e regras defendidas pela organização. Os valores e normas que a UE exige estão contemplados nos critérios de Copenhaga. Os critérios de Copenhaga exigem a existência de “instituições estáveis que garantam a democracia, o estado de direito, os direitos humanos, o respeito pelas minorias e sua proteção, bem como uma economia de mercado em funcionamento” (Conselho Europeu de Copenhaga, 1993:15). O cumprimento e a implementação destas reformas inicia um processo de europeização, cujo objetivo é a introdução de valores e princípios defendidos pela organização. Portanto, para um país poder aderir à UE, tem que garantir que o processo de europeização é iniciado.

É de sublinhar que os processos de democratização e de europeização são paralelos, isto é, um implica o outro. Uma vez que todas as leis da UE pressupõem valores democráticos, os avanços verificados no processo de europeização espelham-se no processo de democratização.

 

Antecedentes Históricos

O processo de democratização na Turquia iniciou em 1980, imediatamente após o golpe de estado (Rodríguez et al, 2013: 81). As primeiras eleições livres foram realizadas em 1983 e, a partir daí, a Turquia tem vindo a sofrer importantes transformações “de natureza interna e externa, que contribuíram para o avanço do processo de democratização” (ibidem).

Em 1999, o Conselho Europeu de Helsínquia reconheceu a Turquia como um país candidato à UE. A possibilidade de integrar o projeto europeu configurou-se como o turning point para o processo de democratização turco, uma vez que, até então, os avanços eram fragmentados e lentos. A possível adesão à UE teve um impacto positivo no processo de democratização e, além disso, despoletou, inclusivamente, um processo de europeização na Turquia. A necessidade de cumprir os critérios de Copenhaga, exigidos pela UE, levou a que o país adotasse “diversas reformas políticas (…), mais concretamente melhorias nas áreas que registavam falhas, para ir ao encontro dos critérios que orientam todo o processo de alargamento” (Graça, 2017: 35).

Agora que a Turquia se tornava oficialmente um país candidato, teria que fazer reformas ainda mais profundas, que fossem de encontro aos critérios exigidos pela UE. Neste contexto, o governo turco tomou importantes medidas como “a abolição da pena de morte e estabelecimento de um maior controlo do governo civil sobre as autoridades militares” (Martinho, 2019: 18).

A UE tinha ainda algumas dúvidas em relação ao compromisso turco, uma vez que ainda haviam “falhas no cumprimento do critério político, nomeadamente no que toca aos direitos fundamentais, a independência dos órgãos judiciais, liberdade de imprensa, e direitos e proteção de minorias étnicas e religiosas” (Archick & Morelli, 2014 apud Martinho, 2019: 18). Embora os critérios de Copenhaga não estivessem completamente consolidados na Turquia, “os progressos alcançados no âmbito jurídico, legislativo e económico entre 1999 e 2004 permitiram o início das negociações de pré-adesão para 2005” (Martinho, 2019: 18).

Em 2002, o Adalet ve Kalkınma Partisi (AKP), em português, Partido da Justiça e Desenvolvimento, venceu as eleições com cerca de 34% dos votos (Carkoglu, 2002: 30). Segundo Marcie Patton (2007: 355), durante a “campanha para as eleições de 2002, o AKP projetou uma imagem confiante e reformista que, no contexto da adesão da Turquia à UE, prometia eliminar os obstáculos à plena democratização”. Recep Tayyip Erdoğan, representante do partido, foi eleito primeiro-ministro da Turquia. Erdoğan tinha em vista a integração da Turquia na UE e, tal como será discutido na segunda parte do artigo, o primeiro-ministro turco esforçou-se nesse sentido, durante o seu primeiro mandato[1]. Em 2005 iniciaram, oficialmente, as negociações de adesão entre a Turquia e a UE.

 

O governo turco e a União Europeia: uma relação atribulada

Entre 2003 e 2004, o governo do AKP mostrou provas suficientes para a UE iniciar o processo de adesão em 2005. Todos os anos, a Comissão Europeia elabora um relatório de progresso, onde faz uma avaliação qualitativa do ano em questão, nas mais variadas áreas. Este instrumento revela-se como fulcral, uma vez que os relatórios são uma ferramenta útil para aferir o nível de compromisso que a Turquia apresenta, perante o projeto europeu. Nos relatórios estão contemplados os aspetos positivos das reformas turcas e estão discriminadas as áreas que necessitam de mais atenção. Além da Comissão, organizações como a Human Rights Watch, a Freedom House e a Bertelsmann elaboram relatórios anuais acerca da Turquia. Não obstante de todos estes relatórios serem extremamente completos, no contexto deste artigo, as áreas dos direitos humanos e liberdade de expressão serão estudadas com mais profundidade.

Após uma análise dos relatórios da Comissão Europeia de 2005 a 2014, é possível visualizar os avanços e recuos decorrentes da implementação das reformas. De um modo geral, entre 2005 e 2007, verificaram-se bastantes reformas positivas nas áreas dos direitos humanos. Segundo o relatório de 2007, constataram-se “progressos em matéria de direitos humanos” (Comissão Europeia, 2007: 12-13).

Contudo, entre 2008 e 2014, o governo turco não se preocupou pela defesa de Direitos Humanos. A título de exemplo, o relatório da Comissão de 2012 demonstrou que na área dos direitos humanos, o “Tribunal Europeu dos Direitos Humanos julgou um total de 160 casos onde a Turquia não respeitou os direitos humanos” (Comissão Europeia, 2012: 18). Além disso, segundo a Comissão, a Turquia continua a não ratificar “três protocolos adicionais à Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (ibidem). Em 2012, a Bertelsmann criticou o facto de “as instituições de direitos humanos continuarem a sofrer por falta de recursos, independência e impacto (…), além disso os ativistas dos direitos humanos também têm, por vezes, de enfrentar processos judiciais, e mesmo penais” (Bertelsman, 2012: 10). Como podemos ver, embora se tenha registado avanços nos primeiros anos, esta área foi alvo de um grande retrocesso a partir de 2008.

A Turquia sempre teve bastantes dificuldades em implementar reformas de forma eficaz na área da liberdade de expressão. Desde 2005 que a Comissão Europeia tem vindo a apelar a um maior esforço no que diz respeito à falta de liberdade de expressão, uma vez que haviam ainda casos de “pessoas condenadas por expressar opiniões não violentas” (Comissão Europeia, 2005: 25). Esta área não foi alvo de melhorias significativas e a situação permaneceu estagnada. Segundo o relatório anual de 2010 da Bertelsmann, o “Estado turco tem vindo a utilizar a lei para perseguir as opiniões não violentas expressas por jornalistas, escritores, editores, académicos e ativistas dos direitos humanos” (Bertelsmann, 2010: 7). Em 2010 a Human Rights Watch reforçou que “a criminalização da opinião pública continua a ser um obstáculo fundamental à proteção dos direitos humanos na Turquia (…) as perseguições de jornalistas, escritores, editores, académicos, defensores dos direitos humanos, funcionários de partidos políticos e associações curdas resultaram em condenações” (Human Rights Watch, 2010). O Relatório da Comissão Europeia de 2013 chamou à atenção para a “censura generalizada, o despedimento de jornalistas críticos, as frequentes proibições de websites e o facto da liberdade de expressão e a liberdade dos meios de comunicação social serem, na prática, dificultadas” (Comissão Europeia, 2013: 13).

O autor Ziya Öniş defende que os progressos na implementação de reformas na Turquia se podem dividir em três períodos distintos: um período de sucesso generalizado, de 2005 a 2007; um período de estagnação, de 2008 a 2011; e um período de declínio, com início em 2012.

Embora se tenham verificado desenvolvimentos positivos até 2005, este panorama altera-se entre 2008 e 2011. Segundo Öniş (2015: 23), esta fase “representou um período de relativa estagnação”. Segundo o autor, o processo de democratização da Turquia foi “misto, com elementos de progresso a coexistirem com uma certa perda de dinamismo na implementação das reformas” (ibidem). Neste período notamos que se verificaram desenvolvimentos lentos ou plenas estagnações em áreas como a violação de direitos humanos e falta de liberdade de expressão. Öniş associa esta fase de estagnação das reformas com o “impasse nas negociações com a UE e o consequente declínio das perspetivas de plena adesão da Turquia à UE” (ibidem). Meltem Müftüler-Baç (2008: 67) afirma que face “aos conflitos internos na UE, os incentivos para adotar os critérios democráticos (…) diminuíram”. Alguns Estados-Membros da UE demonstraram alguma relutância em aceitar a Turquia como um membro de pleno direito. Segundo o relatório da Bertlsmann de 2010, alguns países alegam que “a religião, a geografia, a demografia, o desenvolvimento económico, e os problemas relacionados com a democracia e direitos humanos são fatores que dificultam a adesão da Turquia à União Europeia” (Bertlsmann Report, 2010: 29). O próprio presidente francês demonstrou uma posição agreste face à entrada da Turquia na UE. Em 2007, Nicolas Sarkozi constatou que: “A Turquia não tem lugar na Europa. Sempre segui esta posição, que se baseia no senso comum. Isto não significa que eu tenha algo contra os turcos. Nós precisamos deles, eles são nossos aliados na NATO. Mas se começarmos a explicar – que a Turquia está na Europa –, os estudantes das escolas europeias terão de ser informados de que a fronteira europeia fica na Síria. Onde está o bom senso?” (Sarkozi, 2007)

A partir de 2012 iniciou-se um período de declínio para o AKP. Segundo Öniş (2015: 23-24), constatou-se “um recuo significativo no processo de democratização, com múltiplas manifestações de autoritarismo crescente”. Relativamente à política externa, durante este período, a Turquia enfrentou “graves problemas com praticamente todos os seus vizinhos e viu-se cada vez mais isolada e confrontada com sérios riscos de segurança” (idem: 23-24). A Comissão Europeia também aborda esta questão no relatório de 2012. A Comissão chama à atenção para a questão de Chipre, uma vez que a Turquia “não retirou o seu veto à adesão de Chipre a várias organizações internacionais” (2012: 36). No relatório de 2014, também são abordados os problemas com a Grécia e Chipre, pois estes dois países “apresentaram queixas formais acerca das repetidas e crescentes violações das suas zonas económicas exclusivas e espaço aéreo pela Turquia” (Comissão Europeia, 2014: 5).

Como podemos ver, as reformas nas áreas dos direitos humanos e liberdade de expressão sofreram um grande retrocesso. Podemos relacionar este constante afastamento face aos critérios de Copenhaga com a teoria de democratização. Como já foi referido anteriormente, a transição democrática é um processo difícil, demorado e suscetível de gerar avanços e retrocessos na implementação das reformas. Foi exatamente isso que aconteceu na Turquia, uma vez que, a partir de 2008 assistimos a um recuo na implementação das reformas exigidas pela UE. Desde 2008, os progressos turcos tornaram-se progressivamente mais escassos, as reformas cada vez mais ineficientes e as violações de direitos humanos cada vez mais frequentes.

 

A violação de direitos humanos e a liberdade de expressão: estudo de caso

No contexto da implementação das reformas europeias, o governo de Erdoğan apresentou, desde 2008, uma fase de estagnação, e, desde 2012, uma fase de declínio. Embora este afastamento por parte do governo do AKP se tenha verificado em múltiplos setores, este capítulo vai focar apenas as áreas dos direitos humanos e falta de liberdade de expressão.

Até 1999 havia um respeito muito baixo pelos direitos humanos na Turquia. Quando a Turquia passou a ser um país candidato à UE e, posteriormente, quando iniciaram as negociações, verificaram-se progressos significativos nesta área. Contudo, os progressos começaram a ser gradualmente mais pequenos e as violações de direitos humanos passaram a ser cada vez mais frequentes.

Os números de julgamentos da Turquia Tribunal Europeu dos Direitos Humanos era alarmante. Segundo o Overview do Tribunal, entre 1956 e 2019, a Turquia somou 3645 julgamentos, de longe o país com o maior número de julgamentos executados pelo Tribunal. Além disso, com a ajuda dos relatórios da Comissão Europeia, podemos perceber que o número de julgamentos por parte do Tribunal ia crescendo. Chamo à atenção para os anos de 2009, 2010 e 2011, onde o Tribunal levou a cabo, respetivamente, 381, 553 e 418 julgamentos.

O crescente uso da violência é também um grande entrave para uma melhoria na área dos direitos humanos. Em 2013, a manifestação de cariz ambiental do parque Gezi começou de forma pacífica e terminou com o uso da força por parte das autoridades. Os acontecimentos do parque Gezi ilustram perfeitamente como o uso da força é exacerbado na Turquia. Segundo a Amnistia Internacional “as autoridades turcas cometeram violações dos direitos humanos em grande escala nas tentativas do Governo de esmagar os protestos do Parque Gezi” (Amnistia Internacional: 2013). Andrew Garden, especialista da Amnistia Internacional, afirmou que “os níveis de violência utilizados pela polícia durante os protestos no parque Gezi mostram claramente o que acontece quando agentes policiais mal treinados e mal supervisionados são instruídos a usar a força – e encorajados a usá-la” (ibidem). Além disso, “pelo menos 59 dos jornalistas que cobriram os protestos no parque Gezi foram despedidos ou forçados a despedirem-se” (Freedom House, 2014).

A Turquia tem um grande problema no que toca à liberdade de expressão. Para exemplificar, segundo o relatório da Human Rights Watch, no dia “19 de janeiro de 2007, o jornalista e defensor dos direitos humanos Hrant Dink foi morto a tiro fora do seu gabinete” (Human Rights Watch, 2008). O jornalista turco foi processado várias vezes por escrever de forma desfavorável ao governo e, “em 2006, foi condenado por insultar publicamente o “turquismo”” (ibidem).

Hrant Dink não foi o único jornalista a sentir os efeitos da censura na Turquia. O autor Esra Arsan elaborou um artigo, em 2013, tendo como base as respostas a um questionário dirigido a 67 jornalistas turcos. Se atentarmos no gráfico 1 (cf. Anexos, p. 15), podemos observar as diversas consequências que esta pequena amostra de jornalistas teve de enfrentar após emitir a sua opinião pessoal. Grande parte dos jornalistas inquiridos viram-se envolvidos ou num caso judicial ou num processo. Apesar de nenhum membro da amostra ter sido preso, segundo a notícia do jornal Foreign Policy “em 2013, a Turquia continuou a ser o principal país a deter jornalistas do mundo (seguido pelo Irão e da China) pelo segundo ano consecutivo” (Foreign Policy: 2014). Sempre que um jornalista escreve algo desfavorável ao governo, está condenado a enfrentar consequências. Esta situação é não só uma violação do direito à liberdade de expressão, e, por sua vez, uma violação aos direitos humanos, mas também um abuso incontestável do governo e um atentado à democracia. Segundo o relatório de 2014 da Freedom House “a partir de 1 de dezembro de 2013, o Comité para a Proteção dos Jornalistas, constatou que 40 jornalistas foram presos devido ao seu trabalho”.

Face a esta grande limitação à liberdade de expressão na Turquia, os jornalistas familiarizam-se, rapidamente, com o conceito de censura e autocensura. Um artigo publicado pelo jornal The Economist em 2010 noticiou que “vários jornalistas na Turquia confessaram ter aplicado a autocensura, por terem medo de provocar a fúria do primeiro-ministro Erdoğan” (The Economist: 2010 apud Arsan, 2013: 449). Como podemos ver no gráfico 2 (cf. Anexos, p. 15), todos os jornalistas da amostra acreditam que a censura e a autocensura são práticas generalizadas nos media turcos.

A comunicação social na Turquia é, evidentemente, controlada pelo governo. Segundo o relatório da Human Rights Waych “grande parte dos meios de comunicação social, e em especial os canais de televisão, seguem uma linha pró-governamental e não cobrem notícias desfavoráveis ao governo” (Human Rights Watch, 2014: 33). Entre 2013 2014, “dezenas de trabalhadores da comunicação social foram despedidos ou forçados a demitirem-se dos jornais ou estações de televisão, para os quais trabalhavam, por terem um estilo de escrita, estilo de entrevista, ou áreas de foco que fossem politicamente controversos” (idem: 34). Para reforçar ainda mais essa tese, o quadro 1 (cf. Anexos, p. 16) demonstra que os principais jornais turcos tendem a apoiar o AKP. O quadro contempla os oito jornais mais comercializados na Turquia e seis deles são favoráveis ao governo de Erdoğan. Assim sendo, a esmagadora maioria dos jornais é manipulada pelo governo e os poucos jornalistas que se atrevem a criticar o AKP não saem impunes.

No relatório de 2014, a Freedom House não considerou a Turquia como uma ditadura, porém, afirmou que é um país “onde a crítica ao governo significa arriscar o seu sustento, a sua reputação e, por vezes, a sua liberdade. E, neste momento, é um país onde o governo se comporta mais, e não menos, autoritário” (Freedom House: 2014).

A democracia na Turquia está em crise e está a ser vivida uma situação alarmante, uma vez que aspetos estruturantes como o respeitos pelos direitos humanos e liberdade de expressão não estão a ser respeitados. Segundo Morlino, uma “boa” democracia preza pela existência de uma “estrutura institucional estável que implementa a liberdade e igualdade entre os seus cidadãos através do correto e legítimo funcionamento das suas instituições e mecanismos” (Morlino, 2004: 12). O respeito pelos direitos humanos e a liberdade de imprensa são, portanto, fatores cruciais de uma democracia. Tal como a Freedom House refere no relatório de 2014, “Uma imprensa livre é um ator vital em qualquer democracia, uma vez que promove o debate público saudável” (Freedom House, 2014).

Deste modo, entre 2008 e 2014, o governo turco perdeu vários dos avanços que tinha conseguido atingir nos anos anteriores. Consequentemente, os processos de democratização e europeização, foram largamente afetados e a democracia turca foi fortemente posta em causa.

 

Considerações finais

A possibilidade de adesão na União Europeia afetou, positivamente, a Turquia. A candidatura da Turquia à UE e a necessidade de cumprir os critérios de Copenhaga teve efeitos significativos no processo de democratização turco, provocando um sentimento de forte motivação e estimulação face ao processo. Além disso, ao implementar reformas em linha com o que é defendido pela UE, a Turquia iniciou, inclusivamente, o processo de europeização.

Desde o início do exercício do cargo de primeiro-ministro até 2008, Erdoğan conseguiu ter uma relação positiva com a UE, uma vez que se esforçava em cumprir os critérios de Copenhaga e conseguiu aplicar medidas positivas para o país. De 2008 a 2011 a situação estagnou-se. Não podemos dizer que esta altura se caracterizou por um total descarrilamento por parte do governo do AKP, porém as reformas não eram aplicadas com tanta eficiência e os apelos da UE, mais especificamente da Comissão Europeia, não eram devidamente levados em consideração. O ano de 2012 caracterizou-se como o início do declínio das relações Turquia/EU. Um elevado número de casos de violação de direitos humanos e falta de liberdade de expressão corria os jornais internacionais, manchando a imagem que a Turquia tinha construído até então, perante a comunidade internacional. Esta situação configurou-se como um grande recuo à democratização e europeização do país. Uma vez que os processos de democratização e europeização assentam em valores democráticos, é claro que variáveis como direitos humanos e liberdade de expressão ocupam um lugar de destaque.

A partir dessa altura, o governo do AKP demonstrou uma crescente intolerância à oposição política, aos protestos públicos e aos meios de comunicação social críticos. A falta de liberdade de expressão é um problema grave na Turquia, uma vez que o governo tem uma influência preocupante na comunicação social. Os jornalistas que publiquem notícias, que sejam contrárias aos ideais do governo, sofrem consequências imediatas. No que toca à liberdade de expressão, o governo de Erdoğan assemelha-se ao cartoon da figura 1 (cf. Anexos, p. 16), uma vez que o governo do AKP abafa todos as críticas e opiniões que lhe são contrárias, mesmo que isso implique uma total violação dos direitos humanos da população turca e uma afronta à democracia.

Voltando à pergunta de partida que orientou o artigo: qual o impacto do governo turco nas relações Turquia/UE entre 2003 e 2014? Conclui-se que a influência do governo foi bastante elevada. O distanciamento de Erdoğan das diretrizes europeias minou a sua relação com a UE. Ao desrespeitar direitos humanos e princípios democráticos – os pilares da União – Erdoğan afetou negativamente as boas relações que tinha com a UE até 2008.

A Turquia deve voltar a seguir as diretrizes europeias de modo a diminuir o número alarmante de violações de direitos humanos. Além disso, o país deve adotar leis nas quais os media atuem sem pressão do governo. Só desta forma poderá haver uma transição democrática eficaz e, posteriormente, uma verdadeira consolidação da democracia. Se o governo turco seguisse este caminho e se voltasse a aproximar aos valores e normas democráticas, a adesão à União voltaria a ser considerada uma opção passível de se realizar no futuro.

[1] O primeiro mandato de Erdoğan enquanto primeiro-ministro da Turquia teve início em 2003 e término em 2007.

Referências Bibliográficas e anexo aqui.