Contra o Covid-19: uma luta desigual?

Os efeitos da crise de saúde pública que correntemente atravessamos, em virtude da pandemia do Covid-19, fazem-se sentir muito além da área da saúde, afetando um sem fim de outros setores, desde a economia às relações sociais e familiares. Neste panorama, urge investigar quais as consequências que, a título reflexo, recairão sobre áreas da sociedade já anteriormente minadas por fragilidades diversas. Cabe-nos então perguntar- irá o vírus Covid-19 produzir algum impacto ao nível da desigualdade de género? As estatísticas têm demonstrado que é o sexo masculino aquele que apresenta uma maior taxa de mortalidade em consequência do coronavírus, tanto a nível nacional como internacional. Esta é uma primeira diferença que se verifica quanto aos efeitos da pandemia por género. Não é, contudo, a única. De acordo com um comunicado publicado em março deste ano pelo Instituto Europeu da Igualdade de Género, muitos outros fatores poderão contribuir para o agravar das desigualdades de género existentes até ao momento.

Relativamente à desigualdade de género no plano laboral, verifica-se que, segundo dados estatísticos de 2017 apresentados pela Pordata, Portugal ainda possui uma disparidade salarial com base no género de 16,3%, situando-se um pouco acima da média europeia, a qual se encontra, no mesmo ano, nos 16%. No plano português, de acordo com o INE, observa-se, num primeiro momento, que as mulheres predominam nos setores laborais menos qualificados, enquanto que os homens estão em larga maioria nas posições laborais de poder, seja ao nível legislativo, executivo ou diretorial. Esta sub-representação é tanto mais desigualitária quanto se verifique que é precisamente nos níveis laborais de maior qualificação, ou seja, nos “quadros superiores”, que a desigualdade salarial entre homens e mulheres é mais elevada, sendo que, nesta área, a população feminina ganha em média mensalmente 73,6% do salário masculino, segundo dados de 2015 da CITE. Conclui-se, assim, que à medida do crescimento do nível de qualificação e habilitações académicas da população laboral feminina portuguesa, menor é a sua remuneração comparativamente à população laboral masculina.

Estas disparidades têm tendência a intensificar-se em consequência do coronavírus. Um estudo realizado pela Cesop, da Universidade Católica, demonstra que a perda de rendimento causada pela pandemia faz-se sentir sobretudo nas fatias de população que já ganhavam menos, onde se incluem predominantemente, como referido acima, as mulheres. Também nos setores laborais considerados não essenciais (tais como na área da estética ou da restauração), existe uma predominância feminina no corpo laboral, o que indica que são as mulheres as mais prejudicadas pelas quebras no funcionamento dos mesmos. Simultaneamente, as estatísticas têm revelado que, tanto em Portugal como em vários outros países, a maioria dos postos de trabalho na área da saúde são ocupados por mulheres (Em Portugal, segundo dados da Pordata de 2018, existem 29 682 médicas, face a 23 975 médicos; e cerca de 58 mil enfermeiras, face a apenas 12 mil enfermeiros), o que significa que são as mulheres as mais afetadas pela sobrecarga de trabalho e aumento das horas laborais não remuneradas nesta área, como consequência dos esforços em prole do combate à pandemia, além de serem quem mais enfrenta a exposição ao vírus.

Neste contexto, não podemos deixar de sublinhar a sub-representação feminina ao nível das posições de liderança e de poder decisório, que continua a constituir uma realidade, sobretudo levando em consideração o perigo de agravação das desigualdades de género em consequência da pandemia. Neste ponto, são indubitavelmente de louvar os avanços alcançados até ao momento relativamente à representação política, tendo em conta o aumento exponencial do número de deputadas na Assembleia da República Portuguesa (nos últimos 20 anos, assistimos ao duplicar deste número, sendo atualmente 89 as mulheres com assento no parlamento, face a apenas 40 no início do século) e no Parlamento Europeu (que registou um aumento semelhante, com a população parlamentar feminina a evoluir de 27,5% em 1999 para 40,4% na atualidade), além de possuirmos presentemente duas mulheres com papel predominante ao nível do poder decisório na área da saúde em Portugal. Contudo, (e considerando também a extrema desigualdade que ainda se verifica ao nível da liderança no setor privado, sendo que, de acordo com dados divulgados pela Eurostat em 2017, em Portugal existem 3,3 mulheres por cada 10 homens em cargos de gestão), não podemos ainda, apesar de tudo, falar em efetiva paridade a este nível, pelo que não devem cessar os esforços para o alcance de uma maior representação feminina nos papéis de liderança e de poder em Portugal. Salientemos os exemplos de sucesso da liderança política feminina que têm sido dados no combate à pandemia, com resultados admiráveis em locais como a Finlândia, Alemanha ou Taiwan.

Embora não exista ainda nenhum país europeu onde se verifique uma estrita igualdade laboral de género, é nos países nórdicos (tais como a Dinamarca, a Finlândia, a Islândia, a Noruega e a Suécia) que esta meta está mais perto de ser atingida. Nestes países, verifica-se uma baixa desigualdade salarial em todos os setores, destacando-se contudo os baixos níveis de desigualdade na população laboral com maiores habilitações académicas. Em consequência, segundo dados da OECD de 2018, regista-se uma melhoria do nível de vida nestes países, com um aumento nos índices de felicidade, saúde e confiança das suas populações. Todavia, mesmo nestes países, continua a existir um enorme desequilíbrio ao nível do binómio trabalho pago/trabalho familiar, já que as medidas de promoção de uma maior conciliação entre a vida familiar e laboral, na prática, ainda pendem a favor de alguma desigualdade de género a este nível. Em Portugal o cenário agrava-se, não apenas em razão das medidas existentes não serem tão extensivas, mas ainda pelo facto de o país assumir uma atitude fortemente desigualitária no que diz respeito à distribuição do trabalho doméstico, posicionando-se entre os piores países da Europa a este nível, de acordo com dados de 2019 divulgados pela OCDE, nos quais se refere que as mulheres gastam o triplo das horas diárias despendidas pelos homens em tarefas domésticas. Em contexto de isolamento esta sobrecarga tende a aumentar, sobretudo para as famílias que tenham menores ou pessoas com deficiência ou incapacidade a seu cargo. A conciliação entre o trabalho doméstico/de cuidado e vigília informal e o teletrabalho poderá significar uma elevada perda de produtividade, além de poder acarretar altos níveis de desgaste e stress, potenciando os já excessivos números de doença mental na população feminina. De sublinhar é, ainda, o maior risco de exposição à violência doméstica que o confinamento proporciona.

Por fim, cabe salientar que a igualdade de género é uma meta não apenas justa, mas também benéfica para a economia e a sociedade em geral, porquanto signifique um aumento do talento disponível nos quadros decisórios, um incremento do capital humano alocado à produtividade, maior poder económico ao nível individual e familiar, potenciando um aumento das poupanças familiares, e ainda mais e melhor investimento na saúde e educação das crianças e jovens, de um modo geral melhorando o capital humano das gerações vindouras. Deste modo, é urgente implementar uma visão de género no seio das políticas adotadas no combate à pandemia, como tem sido demonstrado no decorrer de outros surtos epidémicos (tais como o da Ébola e do Zika), e tal como é recomendado pelo comunicado lançado pelo Instituto Europeu da Igualdade de Género. Indubitável é, também, a necessidade de uma mudança de mentalidades no que respeita aos papéis de género, participação na vida familiar e estereótipos de género ao nível da vida social e laboral (nomeadamente, em termos de expectativa de carreira).