O Nosso Ensino Inferior

Se há assunto sobre o qual tenho a certeza que valerá sempre a pena lutar é a qualidade do ensino português. Estou certo de não ser o único a pensar assim. Aliás, aquilo que posso afirmar com toda a certeza é que em Portugal haverá pouca gente a achar que um futuro melhor para o nosso país não se faz através de melhor ensino, que a formação da população não é pedra basilar da democracia, ou que o avanço da ciência não caminha de mãos dadas com o bem-estar das populações. Pois se todos estamos tão certos do problema, custa ainda mais a triste certeza de ver um novo ano letivo a começar e nada a mudar.

 

Se fizermos uma análise justa, encontramos de facto algum dinamismo dentro do nosso sistema de ensino. Basta pensar na quantidade de vezes que o programa das disciplinas do Ensino Secundário mudou nestes últimos anos, na introdução das metas curriculares e das aprendizagens essenciais, na ludicidade na aprendizagem, no regresso à Matemática de outrora porque “antigamente é que se aprendia álgebra e geometria a sério, hoje já nem o círculo trigonométrico aprendem”… Enfim, um sem número de introduções, alterações e remoções para no final tudo ficar igual. Mas pelo menos há interesse na mudança, sempre animados em pano de fundo com a luta, tantas vezes desonesta, dos incontáveis sindicatos afetos aos professores do ensino básico e secundário. E em ano de eleições, o “estadista” Mário Nogueira promete não dar descanso a António Costa no que toca à reposição dos anos de serviço docente. O nosso primeiro-ministro, por seu lado, já veio contrapor: “Não temos dinheiro para pagar essa reivindicação salarial”, para citar o próprio. Com tanto jeito para explicar de forma clara e direta a realidade, António Costa passou com certeza ao lado de uma grande carreira de professor de História Contemporânea numa qualquer EB 2+3 portuguesa.

 

A grande agitação em que vive mergulhado o nosso ensino secundário, contrasta com a pasmaceira em que flutua o nosso Ensino Superior. Perdoem-me a palavra forte, mas numa matéria de tão grave importância como esta, o politicamente correto atrapalha mais que o que ajuda. Cansa a falta de mudanças e reformas estruturais cruciais no nosso sistema universitário; cansa o modo do “deixa andar” em que vive há anos o Ensino Superior português. “Parado, paradinho” é a velocidade a que nos movemos em matérias fundamentais do âmbito das nossas Universidades e Politécnicos. Estagnados no tempo e, aparentemente, satisfeitos com tal situação. Tomemos como casos de estudo reais três temas que marcaram o início do ano letivo no Ensino Superior português: habitação, contratos de investigação e aumento das vagas nas instituições do interior de Portugal.

 

Os sinais que recebíamos dos anos anteriores não deixavam grande margem para dúvida. Juntemos a isso a crescente reconversão de moradias e apartamentos em alojamento local, e então ninguém tinha dúvidas que a procura de casa seria talvez a mais dura praxe que os novos caloiros teriam de enfrentar. Quando nos focamos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, então temos mesmo a sensação que os preços instituídos fazem parte de um qualquer ritual perverso de inserção dos novos alunos na dura realidade que é deixar a casa dos pais. Será assim tão complicado perceber que as famílias portuguesas não têm capacidade para pagar 300€ por um quarto alugado? Muito menos os escandalosos 600€ com vista para o ISCTE que foram notícia, pouco depois do escândalo Robles. Poderá parecer estranho ser um “jotinha” laranja a dizê-lo, mas tardará assim tanto uma intervenção do Estado nesta matéria? E aqui não pode haver dúvidas nem hesitações: o Estado tem de controlar o preço dos arrendamentos, tem de apertar o cerco aos contratos de aluguer ilegais, mas tem sobretudo de se empenhar na construção de novas residências universitárias que possam ser o garante de uma vida digna — e a um preço justo — para os novos estudantes do Ensino Superior. Seria muitíssimo triste que Portugal hipotecasse o futuro de uma geração inteira só porque decidiu tornar-se no país dos alugueres gourmet: casas pequenas a preço de hotéis de luxo. Fazem falta mais iniciativas como a da JSD Distrital de Lisboa, a qual teve a coragem de expor publicamente o problema do aluguer estudantil. Com certeza que os milhares de turistas que todos os dias entram em Lisboa terão reparado nos gigantes outdoors espalhados pela cidade. Com certeza que esse não será o melhor cartão de visita do turismo português. Mas com certeza tal não seria necessário se Portugal não tivesse entrado nesta espiral viciosa contra os seus próprios alunos. Se para alojarmos temporariamente os demais temos de expulsar permanentemente os nossos, então estamos a falhar redondamente na nossa função enquanto sociedade e Estado de direito.

 

Se pensamos que as grandes diversidades estão concentradas nos primeiros anos de Universidade, pois vale então a pena olhar para o exemplo daqueles que “já têm décadas disto”. Chega a ser anedótico como o sistema de Ensino Superior tem tratado ao longo dos anos os bolseiros de investigação portugueses. O mais recente episódio de suposta contratação de investigadores espelha bem a falta de respeito e o desprezo com que as instituições do nosso país tratam os nossos jovens mais graduados. Aquele que prometia ser o momento de mudança absoluta no paradigma da ciência atingiu o estatuto de uma das maiores deceções de sempre. Depois de termos assistido ao nascimento do decreto-lei 57 que primeiro foi 2016, depois cresceu para 2017 e acabou por morrer como norma transitória, os bolseiros portugueses sentiam que finalmente poderia haver esperança na concretização do sonho “1 bolsa + 1 bolseiro = 1 contrato”. No fundo, só queremos que nos deixem trabalhar como os outros, que nos reconhecem como trabalhadores de pleno direito em Portugal. Mas a verdade é que a maldição do “ontem, hoje e sempre” continua sem dar tréguas. Acabamos com a farsa do Investigador FCT para agora nos depararmos com um cenário ainda pior. Investigadores galardoados a serem avaliados com a nota mínima; a mesma candidatura avaliada duas vezes e claro, com notas diferentes em cada uma; investigadores que receberam comentários sobre um projeto de investigação que não escreveram (quem já imaginou professores classificarem testes consoante estes caiam em cima da mesa depois de lançados ao ar, tem todo o direito de imaginar que é esse o modus operandi seguido por alguns avaliadores da FCT). Convido o caríssimo leitor a perder um bocadinho do seu tempo com a notícia publicada a 20 de Setembro pelo Observador. Se o assunto não fosse tão sério, seria sem dúvida uma daquelas belas anedotas. Conclusão final: dos cerca de 4000 candidatos, 3.600 ficaram sem colocação. Science as usual, I would say.

 

Terminada que está a terceira fase de colocações no Ensino Superior, podemos agora avaliar o impacto da extraordinária medida que consistiu em reduzir o número de vagas nas Universidades do Porto e Lisboa, transferindo-as para as instituições do interior do país. Um sucesso estrondoso em toda a linha, diria eu! Aumento claro do número de colocados no interior… das privadas do Porto e Lisboa. Aqui está outra vez o vírus do laisser faire, laisser passer a atacar a saúde do Ensino Superior português. Quando todos esperávamos que algo de substancial pudesse acontecer no interior de Portugal, eis que mais uma vez os grandes beneficiados são os do costume. As vagas retiradas ao Porto e Lisboa vão parar na sua grande maioria ao Minho e a Coimbra. Talvez tenha sido mesmo “só para lançar o debate”, como alguém na altura afirmou. Se não soubéssemos que foi o ministro da tutela, muito provavelmente teríamos gostado de ver tal afirmação como uma piada lançada pelo trio de ataque do Governo Sombra. E pensar que nos distritos do interior temos algumas das Universidades jovem que mais crescem, que todos os anos aumentam o número de alunos inscritos, que têm servido como verdadeiro motor de desenvolvimento das regiões nas últimas décadas. Pelos vistos vale pouco todo o esforço que estas instituições têm desenvolvido, estão condenados a começar a maratona atrasados e a ser constantemente empurrados ao longo do caminho. Vale-nos o típico centralismo do Reitor da maior Universidade portuguesa para explicar que enquanto um neto do Belmiro de Azevedo, um dos herdeiros da Jerónimo Martins ou um dos descendentes do império da EDP não vier estudar para o Interior, então não faz sentido tirar nada a Lisboa e ao Porto.

 

O Ensino Superior tem um papel absolutamente crucial no seio da nossa Democracia. O termo “Superior” não pode apenas significar formação para lá do obrigatório. Não pode apenas indicar o impulso cognitivo que permite a quem o frequenta. Não se pode resumir “Superior” ao facto de elevar intelectualmente todos aqueles que um dia se sentaram num banco da Universidade. O Ensino Superior deve ser sempre um exemplo no seio da nossa sociedade. Deve ser sempre um dos pilares basilares do nosso país e da sua força democrática. Mais, o Ensino Superior tem a obrigação de ser um dos garantes no bem-estar da população, quer através da inovação científica ou do pensamento crítico. Para isso é preciso deixar cair as correntes de estagnação que há anos amarram as nossas Universidades e Politécnicos. É urgente abrir definitivamente as portas aos jovens portugueses que querem deixar a sua marca na ciência e inovação. É necessário flexibilizar as formas de acesso às Universidades e Politécnicos, sem que isso seja sinónimo de exploração da capacidade financeira dos estudantes e das suas famílias. O sentimento poético quase me conduz ao atrevimento de afirmar que “falta cumprir-se o Ensino Superior português”. Ou, talvez ousadia ainda maior, deixar no ar a questão “para quando um Ensino Superior verdadeiramente social-democrata?”