Uma Nova Ordem Mundial?

Richard Haas, diplomata e cientista político norte-americano, publicou o ano passado uma obra onde admitia a possibilidade de estarmos perante a emergência de uma Nova Ordem Mundial, dado que a atual se encontrava desorganizada e em declínio. Segundo Haas, o declínio da anterior Ordem Mundial formada após 1991, com o final da Guerra Fria e o desmantelamento da URSS, estaria principalmente relacionado com o ressurgimento de uma nova rivalidade e competitividade geopolítica entre Estados Unidos e Rússia, acentuada pelas crises na Geórgia (2008), Ucrânia (2014) e Síria (2015), apesar de incluir igualmente nesta equação a situação frágil no Mar do Sul da China e o clima de tensão existente na Península Coreana. Aparentemente, a rivalidade geopolítica das grandes potências parece estar de volta ao xadrez internacional, sendo que Moscovo, levando a cabo uma política externa de carácter mais assertivo, demonstra querer contrariar o sistema unipolar estabelecido por Washington após 1991. Coloca-se, portanto, a seguinte questão: como chegámos até aqui e de que forma o ressurgimento da competitividade entre estas duas grandes potências se encontra atualmente a influenciar a geopolítica mundial? Para responder à presente questão importa recuar até ao final da Guerra Fria.

O sistema internacional de carácter bipolar estabelecido após a 2º Guerra Mundial terminou em 1991. A rivalidade geopolítica entre Estados Unidos da América (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), bem como as respetivas orientações ideológicas antagónicas que moldaram a ordem mundial durante mais de quatro décadas, cessou de existir e a ordem mundial começou a estar centrada na potência vencedora da Guerra Fria – os EUA -, dando origem à existência de um sistema internacional unipolar. Para Washington, o futuro parecia extremamente risonho – dada que agora possuía a capacidade de moldar a geopolítica e a geoeconomia mundial à sua maneira -, enquanto que para Moscovo a década de 1990 acabou por se revelar uma das piores da sua história. A recém-formada Federação Russa via-se confrontada com sérias dificuldades em diversos setores: politicamente, esta década foi marcada por uma grande instabilidade política interna e pela inexistência de um governo central forte; a nível económico assistiu-se a uma situação de grande debilidade, muito devido à crise financeira de 1998, causada pela desvalorização do rublo e que originou um aumento exponencial da inflação; a nível militar verificou-se a fragilização e deterioração do exército russo e dos seus equipamentos; a nível administrativo ficou igualmente clara a disfuncionalidade da burocracia russa, ainda fortemente sovietizada, numa altura em que a nação estava desmoralizada e afetada pela derrota no contexto da Guerra Fria.

Em dezembro de 1999, mais concretamente no dia 31, Boris Yeltsin – Presidente da Federação Russa entre 1992 e 2000 – anuncia a sua demissão e comunica ao povo russo que Vladimir Putin iria assumir funções como Presidente interino. Putin sai vitorioso das eleições de março de 2000 e toma posse como Presidente da Federação Russa em maio do mesmo ano.

Desde cedo que os principais objetivos de Vladimir Putin passaram pela recuperação económica da Rússia, pelo estabelecimento de um sistema de poder interno baseado no que é chamado de autoridade vertical – vertical vlasti em russo –, pela preservação da independência política e económica de Moscovo em relação ao Ocidente e, principalmente, pelo seguimento de uma política externa de carácter assertivo, permitindo que a Rússia pudesse recuperar o estatuto de grande potência dentro do sistema internacional e reconquistar a sua capacidade de exercer influência política no espaço pós-soviético. Nos dois primeiros mandatos de Putin – entre 2000 e 2008 -, a Rússia assistiu a dois alargamentos da NATO – em 2004 e 2007-, originando um sentimento de receio no seio do Kremlin, com a aproximação do aparato militar ocidental às fronteiras de Moscovo, dando uma maior vantagem geoestratégica aos EUA e seus aliados. Consequentemente, o Presidente da Federação Russa viu-se obrigado a endurecer o seu discurso, algo patente na sua intervenção na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, onde criticou veemente o sistema unipolar de Washington, considerando que este era responsável pelo crescimento no número de conflitos em todo o globo, criando instabilidade a nível mundial e culpando igualmente os norte-americanos por tentarem interferir na política doméstica de alguns Estados do espaço pós-soviético, nomeadamente na Geórgia e na Ucrânia – países que foram afetados pelas conhecidas Revoluções Coloridas em 2003 e 2004, respetivamente, substituindo regimes pró-russos por regimes pró-ocidentais.

O primeiro episódio do regresso da rivalidade e competitividade geopolítica entre EUA e Rússia aconteceu logo em 2008. Receando uma possível adesão da Geórgia à NATO, Moscovo surpreendeu a comunidade internacional com a sua incursão militar ás regiões de Abcásia e Ossétia do Sul, após o regime de Tbilisi ter anunciado que iria responder com a força, de modo a restaurar a ordem constitucional destas regiões. Felizmente, o conflito durou “somente” cinco dias – daí ser também conhecido pelo nome de “A Guerra dos Cinco Dias” – e o então presidente francês Nicolas Sarkozy demonstrou toda a sua habilidade diplomática ao conseguir negociar um cessar fogo com os russos. No entanto, a mensagem de Moscovo parecia ser clara: a Rússia não iria tolerar uma eventual aproximação e adesão da NATO ou às instituições europeias de Geórgia e Ucrânia. Simultaneamente, esta intervenção militar também pode ser vista como uma tentativa da Rússia em contrariar a ordem unipolar norte-americana e permitir que Moscovo regresse ao xadrez internacional como uma grande potência, reflexo da maior assertividade de política externa posta em prática pelo Kremlin.

O segundo episódio demonstrativo do ressurgimento de tensões entre Washington e Moscovo ocorreu, precisamente, devido à crise no Leste da Ucrânia em 2014. À margem do direito internacional, a Rússia, argumentando que estaria a defender as minorias étnicas russas no leste ucraniano, invadiu a Península da Crimeia em fevereiro de 2014 e em março, após a realização de um referendo considerado muito polémico pelos observadores internacionais, passou a considerar esta região como fazendo parte integral do território da Federação Russa. No entanto, esta não foi a única razão que motivou o Kremlin a intervir militarmente no Leste da Ucrânia. No final de 2013, o então presidente ucraniano Viktor Yanukovych suspendeu as negociações com a União Europeia para a assinatura do Acordo de Associação, algo que permitiria que o regime de Kiev se aproximasse politicamente e economicamente das instituições europeias. A suspensão deveu-se à existência de uma contraoferta de valores avultados oferecida por Putin a Yanukovych. Contudo, a população ucraniana revoltou-se com a suspensão das negociações com a EU e iniciou uma vaga de protestos na praça Maidan, em Kiev. Putin receou que o regime de Yanukovych perdesse o controlo e que Kiev “caísse” para o lado ocidental, ordenando às suas tropas que entrassem em território ucraniano e ocupassem vários edifícios oficiais. A questão geopolítica e geoestratégica também pesou bastante na decisão do presidente russo. Putin temia que uma eventual adesão da Ucrânia à NATO privasse Moscovo do seu controlo da base naval de Sevastopol, na Península da Crimeia, e, consequentemente, do acesso ao Mar Negro, fazendo com que o Kremlin ficasse em desvantagem geoestratégica face aos seus rivais. Uma vez mais, Moscovo, à margem do direito internacional, serve se da força militar para preservar os seus interesses, sustentados na ideia de que deverá enveredar por uma política externa de carácter assertivo e de rivalidade com os EUA.

O terceiro e mais recente episódio protagonizado pela Rússia de Putin no xadrez internacional teve como palco a Síria. Contagiada pelos efeitos da Primavera Árabe, a Síria de Bashar Al-Assad assistiu ao início de revoltas internas em meados de 2011. Gradualmente a Síria tornou-se palco de uma guerra civil que colocava frente a frente o exército do Presidente Bashar Al-Assad contra os rebeldes do Exército Livre Sírio, composto principalmente por dissidentes. Contudo, emergiu uma nova e mais perigosa ameaça pouco tempo depois: o DAESH. Simultaneamente, os curdos sírios, que ocupavam a parte nordeste do país, também se envolveram no conflito, proclamando o estabelecimento do Curdistão Ocidental – também conhecido por Rojava – fazendo com que o exército de Assad combatesse sozinho em diferentes frentes. Sentido que estava a perder território e que o regime sírio se encontrava à beira do colapso, Assad solicitou auxílio militar a Moscovo em julho de 2015. Putin acedeu ao pedido do presidente sírio, sendo este um momento simbólico, visto que a intervenção militar russa na Síria constituiu a primeira de Moscovo fora do espaço pós-soviético desde o final da Guerra Fria, sendo que o presidente russo o fez por dois principais motivos: o primeiro estava relacionado com o receio da aproximação do extremismo islâmico às fronteiras russas que poderiam causar instabilidade interna, dado que o Kremlin tinha bem presente na memória os longos e custosos conflitos na região da Chechénia. Deste modo, Moscovo considerava que seria importante defender o regime de Assad, impedindo que as instituições políticas de Damasco tivessem o mesmo destino que a Líbia de Gadaffi, quando Tripoli se afundou numa onda de instabilidade política e social após a Primavera Árabe; o segundo motivo prende-se, tal como no caso da Ucrânia, com questões geopolíticas e geoestratégicas. A base naval em Tartus é a única que a Rússia ainda possui fora do espaço pós-soviético, fazendo com que possua um importante valor estratégico no acesso e permanência da marinha russa à zona oriental do Mar Mediterrâneo. Tal como a base naval em Tartus, também a base aérea russa na zona de Latakia possui a mesma importância. Consequentemente, todos estes fatores se conjugaram para que a Rússia defendesse intransigentemente o regime de Assad, fazendo igualmente frente aos EUA que, desde o início do conflito, defendiam a demissão do presidente sírio. Face a esta divergência de interesses entre russos e norte-americanos, a Síria tornou-se palco da emergência de uma nova rivalidade entre Moscovo e Washington que lutam por poder na região do Médio Oriente. Tal como na Ucrânia, a Rússia demonstrou que pretende, efetivamente, contrariar a ordem internacional que os EUA pretendem preservar.

Podemos concluir que a maior assertividade da política externa russa, verificada através das intervenções militares na Geórgia, Ucrânia e Síria, parecem transparecer a ideia de que Moscovo regressou ao xadrez internacional com um objetivo: restaurar o estatuto de grande potência. A ordem mundial estabelecida no final da Guerra Fria é fortemente criticada pela Rússia, que pretende reassumir o estatuto de ator relevante na geopolítica mundial, assumindo-se como uma potência de estatuto equivalente aos EUA e não como um subordinado. Verificou-se, no entanto, que a consequência da existência desta ambição foi o ressurgimento de níveis de tensão entre Kremlin e Casa Branca nunca antes vistos desde 1991, levando alguns autores a colocar a hipótese de estarmos perante o ressurgimento de uma Nova Guerra Fria. Como resultado, a nova ordem internacional unipolar parece cada vez mais estar a desvanecer-se, fruto, igualmente, do declínio norteamericano na geopolítica mundial – principalmente no Médio Oriente – e resta saber como se a emergência de uma Nova Ordem Mundial será benéfica para preservar a paz e estabilidade a todo o sistema internacional.